15.6.03



O HERÓI IMPROVÁVEL



Se o basquete fosse um jogo previsível, Steve Kerr seria hoje um mero figurante no San Antonio Spurs. Aos 37 anos, longe de ser um gênio do esporte, o armador se contentaria em deixar o banco, com atuações esparsas, seguindo o objetivo único de dar aos mais jovens alguns minutos de descanso. Acontece que o basquete não é um jogo previsível.

Como se desse uma rasteira no tempo, Kerr resolveu saltar do bonde quando os trilhos apontavam para o fim de sua carreira. Saltou na hora certa. E caiu justamente num terreno que lhe parece familiar: a final da NBA. Com a audácia de um ator veterano que rouba a cena destinada aos astros emergentes, o baixinho não teve medo de usar um evento grandioso para testar a validade do seu gatilho. Para o azar do adversário, a mira continua calibrada. Abrem-se as cortinas e temos um novo herói.

“Meu emprego é o melhor do mundo. Entro, jogo uns seis minutos, faço alguns arremessos e saio para dar entrevistas na sala de imprensa”, brincou Kerr após a vitória do San Antonio na quinta partida da série contra o New Jersey. Bem humorado, o armador sabe que não tem a agilidade de Tony Parker e a velocidade de Speedy Claxton. Mas sabe também que a santa mão continua em forma. Graças a ela, roubou dos companheiros o privilégio de estar em quadra no clímax do espetáculo.

Ao sair da condição de segundo reserva para assumir um curioso papel de protagonista-relâmpago, Kerr mostra que conquistou a confiança do técnico Gregg Popovich. Tudo isso tem muito a ver com os quatro anéis de campeão e as sardas que começam a se transformar em rugas, dando-lhe uma aparência ainda mais respeitosa.

Mesmo longe dos ginásios, o armador não esquece que o longo caminho percorrido em 15 anos de NBA é tão importante quanto os arremessos cirúrgicos da linha de três pontos. Antes do jogo de sexta-feira, no hotel em New Jersey, ele chamou para uma conversa os titulares Tony Parker e Stephen Jackson, que haviam fracassado redondamente dois dias antes. “Disse a eles que isso já tinha acontecido comigo. Já atuei muito mal em finais. Em 1996, com o Chicago, acertei apenas 30% dos meus chutes. Eu estava nervoso, por isso entendo o que aconteceu com eles. É duro sofrer toda essa pressão e depois enfrentar milhares de pessoas te perguntando porque você falhou.”

Diante desta aula particular, chega a ser engraçado ler, nos dados biográficos de Kerr, que ele teria optado pela carreira de professor se não fosse jogador de basquete. Daria certo. Mas ainda bem que a bola laranja foi mais convincente que o giz e o quadro negro. Pergunte a Tim Duncan. Ninguém melhor que o MVP para explicar o alívio que sente quando olha para o lado e vê aquele senhor de cabelos claros vestindo o uniforme 25.

“Eu adoro vê-lo em quadra”, reconhece o ala. “Toda vez que lhe passo a bola, torço para que ele arremesse, porque realmente acredito que ele sempre vai acertar. É um atleta muito inteligente, que não tenta forçar na primeira chance. Na verdade isso chega a me incomodar, porque eu quero que ele chute toda hora. Mas ele gasta o tempo, se aquece, e quando chega o momento certo, converte os grandes lances.”

Duncan só esqueceu de dizer que, enquanto Kerr está circulando na linha de três, o adversário raramente o deixa sozinho para fazer a marcação dupla dentro do garrafão. Ou seja, até a vida embaixo da cesta fica mais fácil.

Não se sabe quanto tempo o novo herói dos Spurs ficará em quadra hoje à noite. Mas Popovich não hesitará em mandá-lo despir o agasalho. Que assim seja. Se vencer logo mais, Steve Kerr vai poder dormir tranqüilo, sentindo-se responsável por um pedaço do troféu de campeão. Por mais que a idade avance, o papel de figurante ainda não lhe atrai.

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